12 de outubro de 2016

da vida simples

Todos os dias vamos para a escola a pé. Saímos de casa as duas e fazemos a rua entre a nossa casa e a escola. Pouco mais de 300 metros feitos em 5 minutos. Vamos de mãos dadas, observando o começar do dia e conversando sobre o que calha. Assim que passamos o primeiro prédio, vimos sair os dois irmãos que vão para o ciclo, sempre a reclamar um com o outro porque vão atrasados. No ciclo entra-se mais cedo que na escola primária! Depois dobramos a esquina e vamos passando por tudo o que já sabemos que nos espera. A primeira coisa que a esquina nos traz é a temperatura que está, hoje veio o frio da chuva bater-nos na cara e disseste logo que o Verão já não voltava "não é, mãe?", e lembrámo-nos de quando está tanto frio que dobramos a esquina e a cara congela, ou de quando está a chover muito e os guarda-chuvas se dobram e partem sempre no dobrar da esquina. Logo depois, as árvores chamam a tua atenção com a sua lenta transformação, as folhas já estão cor de vinho e a chuva fê-las cair durante a noite. Também se vê a confusão que a chuva provocou nos quintais das pessoas, que ainda estão no ritmo pouco precavido do bom tempo. Ficou tudo à chuva e está tudo molhado. Logo a seguir, aparece o primeiro vizinho a quem dizemos bom dia. Um senhor que sai de casa para esperar a carrinha do pão, que já se ouve buzinar na rua de baixo, e que traz no bolso um punhado de ração seca para os gatos vadios que circulam por ali. Mete a ração no cimo do muro que me dá pela cintura a mim e pelos ombros a ti, garantindo que o cão da segunda vizinha a quem dizemos bom dia não tem ideias tristes. Em Setembro, no primeiro dia do nosso caminho para a escola a vizinha sorriu mais que o habitual e, além do bom dia, disse um espantado "ela cresceu tanto no Verão!". Fazes uma festa apressada ao cão e seguimos. Normalmente, aqui comentamos que não estamos atrasadas. Sabemo-lo porque ainda não vemos a carrinha do pão. Ali, em frente da casa da senhora do cão, é a segunda paragem da rua e quando a carrinha do pão lá está quer dizer que estamos em maus lençóis. Baixamos a cabeça porque as árvores estão a pedir uma poda já há uns tempos e dizemos bom dia ao terceiro vizinho, que ficou doente há pouco tempo. Está de cadeira de rodas, mas sai para o meio da estrada e com a ajuda de uma muleta já se põe de pé a espreitar se vê a carrinha do pão. Comentas-me que o senhor está melhor, porque antes nunca saia da cadeira de rodas e ia pela estrada buscar o pão à paragem que fica no largo, a primeira da rua. Do outro lado, o cão que não se vê, ladra da casa ao lado da casa que está em obras. A obra vai bem avançada e nós fazemos apostas sobre quando estará pronta. Eu aposto na Primavera, mas tu achas que os senhores fazem tanto barulho que isso só pode querer dizer que os donos vão lá passar o Natal. Eu explico-te todos os dias de quem acho que é a casa e tu acabas sempre a dizer "ah, pois é! Já me tinhas dito", mas nunca te lembras quando eu começo a dizer. Chegamos ao largo antes da escola e começas as despedidas. Nem sempre te apetece que eu te leve mesmo até ao portão e eu deixo que controles essa decisão, feita mais de sinais e menos de palavras. Hoje, deste-me o guarda-chuva e um beijinho, mas depois disseste "vens até ao portão?". Claro que vou.
Entramos na praceta e combinamos como vai ser o dia após o fim da escola, mais um beijinho antes do portão e fico ali a ver-te entrar pela escola. Não levamos relógio, nem precisamos dele, o senhor da carrinha do pão diz-nos se estamos atrasadas. Quando faço o caminho de regresso, lá está ele na primeira paragem e lá estão os clientes do costume. Ele vê-me e diz-me bom dia lá do fundo. Comprei-lhe pão uma vez, mas ele vê-me todos os dias. Não lhe compro pão mais vezes, porque saio apenas com a chave de casa para te ir levar à escola e ver a vida do bairro a acontecer enquanto cresces. Um dia, isto tudo vai acabar. Ou deixar de ser assim. Mas agora, este caminho que faço todos os dias de manhã, no lento correr da vida, tornam-me parte do que é agora.








27 de setembro de 2016

a minha cabeça nunca está aqui

Viajo tanto quanto consigo e para onde consigo. Nalgumas vezes sozinha e, sempre que possível, com os meus filhos. Viajar é perceber quem somos. É encontrar nas diferenças culturais, razões de vida que são unas. Ver os outros, para nos vermos a nós e com isso percebermos que fazemos todos parte de uma coisa maior chamada humanidade. Parece-me que a tolerância existe quando se aceita o outro como igual, sabendo-o diferente. E esta noção de igualdade surge com o conhecimento de que as pessoas de outros países sentem, pensam e fazem como nós. Este 'como nós' ganha cada vez mais significado em mim. Viajar oferece-me um mundo mais lúcido, um ego menor e a capacidade de me encontrar nas pequenas coisas. Viajar oferece-me respostas, mas também, e sempre, mais e novas perguntas de descoberta.
E esta coisa de passear vai ganhando espaço. Dias seguidos. Gosto muito de o fazer na versão pelintra. Dá-me uma sensação de total desprendimento de tudo, de liberdade absoluta não saber onde, nem como, nem a que horas. Ir indo. Tenho, por isso, cada vez mais dificuldade em passear com quem seja, porque este nada que tem um logo se vê, não é para todos. Quando deixo os dias seguirem, acontecem coisas inimagináveis e vivemos momentos únicos, pela surpresa e descoberta que dão. Hoje em dia as pessoas gostam de tudo programado. A hora, o lugar, o hotel, o almoço e o jantar. Tomar banho, dormir, comer, sentar na esplanada. E eu ando muito contra a corrente. Eu gosto de tudo desprogramado. Sem hora, sem lugar, comer quando tenho fome, dormir onde se encontrar e quando nos apetecer. Faço muito isso aos domingos, que é o único dia que conseguimos existir pelas nossas leis. Por isso, raramente almoçamos ou jantamos, no sentido formal da coisa, e só percebemos que o dia acabou porque anoitece.

Ora, claro que quando penso nalgum passeio ou viagem, sou atraída pela aventura do sem programa prévio. Apenas um destino ou um objectivo. E essa coisa dos objectivos está-se a tornar numa obsessão, porque eu adoro perseguir imagens ou pontos no mapa que, por uma razão ou outra, soube que existiam. A primeira imagem que me lembro de perseguir, foi a Ilha de Brac, na Croácia. Vi a fotografia na Expo de Hannover, quando andava a fazer um interrail e só descansei quando tirei a fotografia na ponta da ilha. Esta ponta:

















Gostava de mostrar a foto de mim lá, mas não sei onde está. Na altura, em 2000, foi até bastante aventuroso chegar até lá. A guerra civil da Jugoslávia ainda estava mais ou menos a acontecer e quando decidimos ir nao sabíamos bem como o fazer. Em Zagreb encontrámos um ambiente muito difícil e já na costa da Croácia, descobrimos um lugar a querer sobreviver. Mas valeu tudo.

Continuei sempre a perseguir imagens ou nomes de lugares e a isso juntei a minha paixão por conduzir estrada fora. Haverá alguma coisa melhor que ter a liberdade de conduzir estrada fora? Este é o meu luxo.O carro. Amigos da caminhada e da bicicleta, eu não estou nessa. Um carro não cansa, transporta tudo e serve de abrigo, quando falta o sítio para dormir. E eu adoro conduzir. Falta-me concretizar a autocaravana/carrinha adaptada pela estrada fora. Um dia.

Entre os muitos passeios ou viagens que já fiz sozinha, ou com os miúdos, há um lugar especial para o GrossGlockner, na Áustria. Aliás, essa viagem a dar a volta à Áustria ficou no nosso coração. Grossglockner é o ponto mais alto da Áustria. Tem 3797 m de altitude, pelo que é a segunda montanha mais proeminente dos Alpes, depois do Monte Branco. É tudo inacreditável lá e quando li num livro que era considerada uma das 10 estradas mais bonitas do mundo, percebi que tinha que a fazer. Só está aberta entre Maio e Setembro e termina num glaciar. Na foto, a Mia com 9 anos, põe-se a jeito para o registo. Não consegui encontrar mais imagens, mas esta mostra uma parte muito gira da estrada.













Depois desta, e antes desta também, já temos tantas na nossa lista! Tenho planos de as ir contando aqui, para as guardar com o detalhe que merecem!

Agora ando com duas novas obsessões. Era só uma, mas entretanto esbarrei na outra e não pode ser. Ter duas obsessões em países diferentes. Eu preciso resolver isto.

Øresundbron
É uma ponte/túnel que liga Copenhaga, na Dinamarca, a Malmo, na Suécia. Tem de 8 quilómetros de ponte e 4 quilómetros de túnel pelo canal Flint. É absolutamente essencial eu ir lá.










Passage du Gois
Aqui mesmo ao pé de nós, em França, ao lado de Nantes. É uma estrada na baía de Bourgneuf que une a Ilha de Noirmoutier ao continente. É famosa porque a estrada fica submersa pelo mar conforme as marés e apenas é transitável durante a maré baixa, ficando inundada duas vezes por dia durante a maré cheia. How cool is that?










Agora só preciso encaixar isto tudo na minha agenda. Wish me luck! 

13 de setembro de 2016

depois ::: after

***Scroll down for the English version***

Escondi-me. Fugi e escondi-me. Em casa. As pessoas andam a ver de mim e eu continuo cada vez mais escondida e não sei o que faça. Ensaio respostas. Evasivas. Ensaio respostas que não são mais que bocados vazios cheios de palavras que não dizem nada. Silêncio. A primeira vez que me sentei no café perto de Skaramagas com a Andreia, falei dos refugiados e ela disse-me que ia haver um dia que eu ia parar de lhes chamar refugiados. Voltei da Grécia sem refugiados. Voltei com nomes. Pessoas. E agora, que faço? Fui-me embora a querer falar sobre refugiados e volto cheia de pessoas? Não posso contar a vida deles. Dos meus amigos. Nem o nome deles me apetece dizer. Apetece-me guardá-los a todos e não dizer nada aos que esperam por me ouvir. Posso falar dos campos, das squats, dos voluntários, das organizações. Posso falar do que falta. Do desespero. Da vida que passa cheia de nada. Do amanhã que não existe. Da normalidade com que o inacreditável me é relatado. Do difícil que é olhar novamente para a vida que existe ao meu redor. Da certeza que tenho que nenhuma palavra que eu diga será suficiente para fazer entender uma realidade que só vivida pode ser compreendida. Sentida é uma melhor palavra. Posso. Devo. Repetir até à exaustão que são pessoas como nós. São pessoas como nós. São pessoas como nós. São pessoas como nós.

SÃO PESSOAS COMO NÓS.

Não. Não são coitadinhos. Não. Não devemos ter pena. Não, eles não precisam de misericórdia. Precisam de respeito. Da devolução da sua dignidade. E, se calhar por isso, é importante que a palavra refugiados permaneça. É importante que eu fale dos refugiados, que eu volte a essa distância. Há muito para dizer. Mais ainda para fazer. É tudo tão imenso. E tão pouco. O contributo de cada um para cada refugiado é apenas devolver-lhe a dignidade que lhe foi tirada. Às vezes só por uns breves momentos. Mas já contou. Na conta da humanidade, já contou.

:::

I hid myself.  Fled away and hid myself. At home. People are searching me and I continue hidden and do not know what to do. Rehearsal responses. Test answers that are nothing more than empty pieces of words. Silence. The first time that i sat in the cafe near Skaramagas with Andreia, I spoke of refugees and she told me that there was one day that I was going to stop to call them refugees. I returned from Greece without refugees. I returned with names. People. Now what do I do? When i left i wanted to talk about refugees but now i returned full of people. i can not talk about their lives. They are my friends. Neither their names i feel i want to say. i feel the strong need to protect them and don't say a word to the ones that are waiting for my stories about them. I can talk about the camp, the squats, the volunteers, the organizations. I can talk about what is missing. The despair. The life full of nothing. The tomorrow that does not exist. The unbelievable reported to me as normality. And how hard it is to look again to the life that exists around me. The certainty that no words could be enough to anyone understand this reality without actually live it. But I can. I must. Repeat to exhaustion that they are people like us. They are people like us. They are people like us. They are people like us.

THEY ARE PEOPLE LIKE US.

No. They are not poor things. No. We should not feel sorry. No, they do not need mercy. They need respect. They need their dignity. And maybe that is why it is important that the word refugees remain. It is important that I speak of refugees, that I return to this distance. There is so much to be said. More still to be done. It's all so immense. And so little. The contribution of each of us to each refugee is just give him back the dignity that was taken from him. Sometimes only for a few brief moments. But already worth it. On the account of humanity, was worth it.



30 de agosto de 2016

kalispéra*

Podia sentar-me a escrever histórias sobre pessoas. Passo o dia a ouvi-las. E a perguntá-las. E a responder a minha história. E, sim. Sim, há histórias devastadoras. Sim, há histórias que ficam com frases a meio, frases que vão ficando cada vez mais baixinhas até que se deixa de ouvir a voz. Há frases curtas. De quem quer contar sem palavras. Conta com o corpo, com o olhar para o chão, com o gesto que faz com a mão. Mas também há histórias maravilhosas. Ou histórias tristes, contadas de forma maravilhosa. Pessoas maiores que o que lhes aconteceu. E continua a acontecer. Se vim aqui aprender alguma coisa, foi com certeza novos significados para palavras antigas. Dignidade. Respeito. Tolerância. Orgulho. Amor. Pessoa.
Podia sentar-me a contar histórias que fazem chorar, ou reflectir sobre prioridades, sobre orgulhos e vaidades, sobre desperdícios de tempo apenas e só porque as pessoas têm medo e vivem dentro dos seus medos. Medo de falhar, medo do ridículo, medo de se exporem, medo da rejeição. Medo. Medo. Medo. De viver.

Mas hoje não. Hoje quero registar este dia como o dia das pessoas livres de medos.
Hora de saída do campo. Começamos a anunciar que temos que ir. E os miúdos mais velhos, os "Tiaguinhos" como eu lhes chamo, começam a chegar-se e a meter conversa. São sempre os mesmos. Os que ajudam todo o dia os voluntários durante as actividades a tomar conta dos mais novos.
Escoltam-nos ao carro, numa atitude de total cavalheirismo e vão conversando pelo caminho. Fazem isto sem perguntar se podem ir, se queremos que eles vão. Simplesmente vão.
Hoje ensinaram-me a dizer boa noite em grego e quiseram aprender a dizer em português. Um deles sonha ir morar para Espanha. É lá que joga o maior do mundo, o Cristiano Ronaldo. Ele quer vê-lo a jogar e no fim vai conhecê-lo. Explica-me isto tudo com a maior da sacanice no olhar. Os olhos dele são de uma cor indefinida. Algures entre o azul, verde e avelã. Dá-me a mão, com os dedos entrelaçados, enquanto me explica que depois me vai visitar a Portugal. Do outro lado, vai o Jamal. Esse já o conheço há mais tempo. Ele sabe isso e já se comporta com essa segurança. Falamos da escola e de que tem que continuar a estudar, mas ele está mais interessado em saber até quando fico no campo e qual dia é que é mesmo o último. Quando chegamos ao destino, despedem-se com um high five. O Jamal ensaia um meio abraço e sorri. Sem medo. Sem medo de se dar.

*boa noite em grego.

27 de agosto de 2016

processos de logística emocional

Há dias que são efectivamente o primeiro do resto das nossas vidas. Hoje foi um desses. Tenho o coração cheio. E também vazio. Isto de um lado é nada e do outro é tudo. 
- Hey, my friend! What's your name?
- Ana.
- Ana in arabic means "me"!
- Where are you from?
- Portugal.
- Portugal? Good country?

Depois sorriem. E ficam ali ao pé. Já são amigos. Já somos todos do mesmo sítio. Somos de Skaramagas. Estamos todos ali e acho que nenhum de nós sabe bem porquê. O inglês é fraco, mas o silêncio e o olhar chega para estar ali a sermos amigos.

Hoje a Esra chorou quando outra miúda cantava uma canção. Era sobre a terra dela, no Iraque, e contava que tinham fugido de lá por causa da guerra. Tem 13 anos e saudades. Dá-me a mão, enquanto estamos sentadas no chão a ver o Skaramagas Got Talent. Do outro lado de mim está a Assmaa, que não me larga desde que nos conhecemos. É da Síria, tem 16 anos, fala inglês e percebe curdo. Vai-me contando o que se passa no palco. As canções são todas tristes? Pergunto-lhe. Ela sorri. Entretanto vem outro miúdo cantar e começam todos a acompanhar e ela contente diz-me ao ouvido "happy song about mother". Respondo-lhe: All the songs about mother are happy! E ela encosta a cabeça no meu ombro e diz - Yes!
Quando nos despedimos, agarra-me as mãos e pergunta-me: - You return tomorrow?

Não há barreiras nesta relação. Não há amanhã. Não há depois. Se é para fazer, faz-se agora. Se é para dizer, diz-se agora. Estão ávidos de se dar. Eles não querem receber nada. Querem dar-se todos. Sentam-se, encostam-se, dizem as palavras que sabem e quando não sabem palavras galgam para cima de nós e olham sem desviar o olhar. Os mais velhos, sentam-se ao lado e ali ficam. Os olhos deles são grandes demais para que lhes possa continuar a chamar refugiados. Sinto que podia ficar aqui para sempre e fazer isto todos os dias da minha vida. Sinto que não lhes dei nada mas eles receberam tudo. Na verdade, nem sei quem está a dar a quem. Não sei se eles têm noção do que me salvam a cada momento. Estamos na base da pirâmide e ali, onde não resta nada, acaba a haver o mais simples, o mais puro, o mais verdadeiro.
Voltamos para casa e o Ahmad pede-me amizade no facebook. Tínhamos estado juntos no mercado voltado para o mar que nasce ao fim do dia. Aceito. Pergunta-me no chat:
- You know who am I?
- Off course. You teached me how to say falafel.
Responde-me com emojis cheios de corações e depois um " you remember me".
Como posso eu esquecer?




25 de agosto de 2016

you are not alone

Sapatos. Caixas cheias de sapatos. As indicações eram simples. Era preciso tirar uma caixa qualquer da parede de caixas, abrir e depois organizar os sapatos por número. Se não estiverem em bom estado, vão para a caixa dos rejeitados. Caso contrário, limpar de possíveis acrescentos que as pessoas tivessem decidido dar: peúgas, papel a garantir que eles não perdiam a forma. O que parece uma boa ideia em casa de alguém, num campo de refugiados é apenas lixo. Tem que ser limpo no armazém antes da distribuição. Depois são novamente encaixotados por categoria: homem, mulher ou criança e, dentro de cada categoria, verão, inverno ou ténis. Fechar a caixa, por número do pé, e forrar nova parede, já dentro do armazém da organização. Precisamos de fazer stock. A distribuição só acontece quando garantidamente existirem sapatos para todos. Nada vai para o campo enquanto não houver um item para cada pessoa que esteja a morar lá.
Perguntei: Como decido se os rejeito?
Responderam-me: Se os desses aos teus filhos é porque estão bons.
Os meus filhos.
Ali estive, com mais quatro voluntários, por muitas horas, muito calor, muitas caixas.
A verdade é que não se pensa em nada. Faz-se.
Nalgumas caixas estão sapatos iguais aos dos meus filhos, noutras caixas estão sapatos novos ainda com etiqueta. Há também sapatos de festa, temos uma caixa especial para esses, porque esses sapatos não entram no campo. No party people.
Cerca das três da tarde, um grego que é um dos fiéis do armazém grita a plenos pulmões STOP-OUTSIDE! Nessa altura, estavam na sala apenas voluntários acabados de chegar e por isso seguimos os outros que foram aparecendo por trás de outras paredes de caixotes, imitando a sua normalidade e repetindo os gestos, observando antes de actuarmos.
No hall de entrada, os gregos que tomam conta deste antigo pavilhão construído para os Jogos Olímpicos, montaram umas mesas e meteram algumas cadeiras à volta. Não dá para todos e, por isso, eu e a Andreia sentamo-nos no chão, com o kit que nos deram. Era o almoço. Em caixas de plástico. Exactamente o mesmo que tinha sido distribuído no campo aos refugiados. É feito e distribuído pela marinha todos os dias. Abrimos as caixas e vamos fotografando todos os passos. Primeiro o kit como nos dão. Depois o kit espalhado no chão, mas ainda fechado, depois a caixa maior aberta. Abrimos e comemos. Em silêncio. Ao fim de uns minutos não aguento mais e pergunto à Andreia: Gostas?
Não aguentava mais não saber se ela gostava. Não aguentava mais lidar sozinha com aquilo. Na minha cabeça corria a cena familiar habitual de uma ida ao fast-food, onde nos dão sempre só dois tabuleiros com a comida toda amontoada e, quando me sento na mesa com os meus filhos, distribuo-a por cada um e quando acabo digo na brincadeira "comam e se não gostarem, mintam".
Se não gostarem, mintam.
Agora como em silêncio, imaginando-me a distribuir aquele kit aos meus filhos e a saber que não precisaria pedir que mentissem. Precisaria apenas que comessem. Eu comi. Por respeito aos que também comeram aquilo hoje.

Voltámos aos sapatos. Pego uma caixa de sapatos de homem. Noto papéis lá dentro e tiro-os para deitar fora. Ao fundo, um post it dobrado trazia uma mensagem para o próximo dono dos sapatos.
Dizia, tu podes estar a comer num caixa de plástico, tu podes estar a morar num tenda, tu podes não saber o que te vai acontecer nem amanhã nem daqui a um mês nem daqui a um ano, tu podes estar desesperado. Mas tu não estás sozinho. Eu tenho amor para te dar.

Voltei a dobrar o papel e meti-o dentro do sapato. É importante que a mensagem chegue ao destino. É importante que se saiba isso. Mais. Muito mais do que se faz, é o que se dá de nós.



22 de agosto de 2016

onde eu vou, vocês vão.

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.

(...)

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge de Sena, excerto de Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya






19 de agosto de 2016

do melhor de mim

Há muitas razões que me fazem conseguir fazer estas coisas que faço. Estar 11 dias seguidos de férias noutro país e em casa de outras pessoas, em versão pelintra, não é nada fácil. Há muito desgaste e muito cansaço acumulado. Vemos muitas coisas, é verdade. Aprendemos muitas mais, além das que vemos. Aprendemos a conhecer-nos melhor, a ser mais tolerantes, a respeitar o tempo e o espaço do outro. Assim escrito parece bonito, mas também mete gritaria! Perguntam-me como sou capaz. Não sei muito bem. Muita estupidez natural. Pouca consciência do que estou a fazer. E depois, estes dois fiéis e incansáveis ajudantes sempre presentes e sempre atentos. Se estes dois não existissem como são, não íamos a lado nenhum nem fazíamos coisa nenhuma. Os becas. Aturam a mãezinha e aplacam o diabo dos caracóis amarelos todo o santo dia. As pessoas dizem que sou uma super mãe. Saibam pessoas, que ao lado de uma super mãe, há sempre super filhos.


25 de julho de 2016

se alguém me conseguir explicar o sentido disto, eu agradeço.

Ando-me a esforçar para encontrar sentido para as coisas, mas já desisti de tentar encontrar graça nas coisas. Para já, congelei essa função. Não sei bem porquê, ou não estou ainda capacitada para enfrentar o porquê, mas não me apetece nada do que faço. Faço porque, por alguma razão que alguém tem e me apresenta, tem que ser feito. Sem discussão. Sem vontade. Sem graça.
Aqui há uns tempos um amigo meu disse-me que quando vê alguém como eu a perder o encantamento é quando deixa de acreditar que o mundo pode ser melhor. Mas o problema é que eu já não acredito que o mundo possa ser melhor! Eu já não acredito que tudo não seja apenas um grande e ridículo absurdo.
A última coisa que senti que queria fazer, foi a ida à Grécia, como voluntária. No meio de toda a incerteza que é esta ida, no meio do tudo que é a minha agenda profissional, cheia de coisas que aparentemente são de uma importância extrema e inadiável, dos meus filhos e da nossa vida...no meio disto tudo, eu e a Andreia fomos construindo o nosso projecto. Trocámos milhares de mensagens e montámos a coisa. Ela já esteve na Grécia e tem a experiência desta incerteza. Vai-me dizendo para não me preocupar, vai tudo ganhar forma, vai tudo correr bem. Comprámos os bilhetes de avião e achamos que vamos para o campo de Skaramagkas, que é para onde estão a enviar as pessoas que estão no porto de Piraeus, em Atenas, uma vez que está a ser desmantelado. Dizem. Parece.
Agora temos que ver como conseguimos alojamento, o mais barato possível, porque os nossos custos saem do nosso bolso integralmente e são a viagem, o alojamento, a alimentação e as deslocações que tenhamos que fazer por lá. Andamos tão ocupadas em tentar perceber como vai acontecer, em manter a página do projecto para tentarmos angariar algum dinheiro para montar um centro escolar. Não está fácil. Estamos na silly season e as pessoas acham que os refugiados são uma sub-espécie. Um sucedâneo. Uma mentira. Terroristas. Que eles estão habituados. Os países deles sempre foram estranhos. Esta gente é esquisita. As pessoas acham que esta não é a causa delas, que devíamos apoiar os cães, os gatos, as nossas crianças, os velhos, as árvores, a calçada portuguesa ou a bola de Berlim com creme. Ou estar quietas. Palermices. Solidariedadezinha. 
Não quero ser ingrata. Não quero minimizar as pessoas que já nos ajudaram com palavras, partilhas e dinheiro. Pessoas que nos deram desde 5 a 100 euros, numa conta criada à pressa e com esperança. Que já tem perto de 400 euros, neste momento. Sei quem foram quase todas as pessoas que nos ajudaram. E, por isso, sei que são sempre as mesmas. As que também ajudam os cães, os gatos, as crianças, os velhos e por ai fora. A minha gratidão, admiração e humildade perante estas pessoas é gigante. A bondade é como o amor. Quem a tem nunca a esgota.

Ando tão ocupada, dizia eu, que aproveitei estar ocupada para não ter tempo de ir ver o que se passa na Grécia de verdade. A Andreia anda a tratar dessa parte e essa é a desculpa perfeita para não ir saber. Não ver. Não me envolver. Apenas fazer. Resolver as coisas que há para resolver.

Hoje, a Andreia publicou uma foto que tirou com uma família com quem criou laços quando esteve na Grécia em Maio. E, por mensagem privada, mandou-me uma foto deles, tirada há dois dias, no novo campo onde estão. Convido-vos a olhar para ambas, com algum vagar.


























Obrigada por o terem feito.
Dois meses separam estas fotos. Dois meses separam o olhar destas crianças. Reparem na esperança, luz e alegria que existe na primeira foto. Reparem no cansaço e falta de brilho na segunda. A mesma família, mas não os mesmos corações. As mesmas crianças, mas não a mesma infância.

Podia ser eu ali, rodeada pela Mia, pelo Tiago e pela Madalena. 
Podia ser um qualquer de nós, a querer que a vida continue a fazer sentido, a querer encontrar o caminho de volta ao caminho.

Mas, até ao momento, nós tivemos sorte.

14 de julho de 2016

preciso de férias antes de ir de férias

A pessoa está esgotada. A pessoa já não existe. Apenas se arrasta e tenta disfarçar o melhor possível. Mas a realidade é que estou burra, lenta, sofrida. Por favor, acabem com este sofrimento. Este mês de Julho tem sido o pesadelo. Estou metida em vários projectos importantes e exigentes que têm que ficar em estado quase terminado este mês e não consigo mais.
Entretanto caiu-me a ficha dos planos que fiz para o Verão e percebi que me esqueci que tenho um corpinho de quase 40, maltratado como o raio, e a mania que tenho 20. Ou seja, daqui a duas semanas fico de férias, com eventos sucessivos e em meados de Setembro, recomeço a trabalhar como se não tivesse feito nada do que vou fazer. E só volto a ter férias em Agosto de 2017!
A minha planificação, ou deverei dizer a minha ânsia de fazer tudo e mais um par de botas, fez-me decidir chegar num dia de uma road trip em couchsurfing com os miúdos e embarcar para a Grécia como voluntária no dia a seguir. Alguém me dê com uma raquete de ténis nas ventas com urgência.
Hoje soube que o meu pedido de participação no projecto de voluntariado foi aceite pela minha escola e vinha tão contente escada acima para o meu gabinete, feliz da vida porque assim vou conseguir fazer uma coisa que quero mesmo muito muito muito fazer, que só quando a fui meter no meu calendário é que percebi que tinha todos os dias com uma coisa que me exige muito ou fisicamente ou emocionalmente. Ou ambas. Porra pá.
Anda a pessoa a mandar vir consigo própria porque não sabe dizer não, e com o mundo porque o mundo estica-se muito com a pessoa e afinal chega às férias e faz exactamente a mesma coisa. Entope-se de tudo e mais alguma coisa.
Fico a pensar, será isto defeito ou feitio?

12 de junho de 2016

das outras mães como nós

Tenho vindo a pensar cada vez mais nas Anas desta vida. Mulheres como eu. Que têm sonhos, aspirações e que querem concretizar. Seja a vida delas, seja a dos filhos, da família. Mas não podem. Não conseguem. Não consigo entender o arbítrio da fatalidade. Porque me calhou a mim o privilégio de ter uma vida cheia de possibilidades, em que as questões que enfrento são sempre de um nível social, cultural, familiar mais elevado, enquanto que há mulheres que têm uma vida cheia de contrariedades, em que as questões que enfrentam são se vão ter comida para dar aos filhos, se vão ter segurança suficiente para uma noite sossegada. Se vão, sequer, sobreviver. Quanto mais penso nisto, menos compreendo a ordem das coisas. E quanto mais penso nisso menos compreendo porque as Anas, como eu, fazem tão pouco para as Anas que estão hoje algures na Grécia, por exemplo, sem sequer saberem como vão fazer acontecer o resto deste dia. Penso que não se consegue mudar o mundo. Mas consegue-se mudar-nos a nós. Consegue-se transformar a vida, assumindo a responsabilidade que temos perante quem pode menos, porque por alguma razão, assim foi o seu destino. Quero que a minha vida seja útil. Quero usar-me do privilégio que tenho de ter e poder fazer pelas outras mulheres que podiam ser como eu, mas não são. Quando algo não nos sai da cabeça é porque chegou a hora de o concretizar...


7 de junho de 2016

socorro, tenho um (dois) filho adolescente!

Discutir com filhos é uma das piores coisas do mundo. Reformulo, discutir com filhos adolescentes é uma das maiores dores de cabeça que uma mãe pode experimentar. É que uma pessoa tenta compreender, respeitar a individualidade, uma pessoa tenta promover sempre a liberdade e responsabilidade e confiar que vai correr bem, porque eles têm os valores certos no seu core, mas, caramba pá! Há dias mesmo complicados, há fases mesmo nubladas em que uns dias parece que sim, que as coisas até vão correr bem e é preciso é relativizar e deixar o tempo colaborar nesta tarefa, mas depois existem outros de total desespero e perda de controlo da situação. Porque a pessoa também se cansa. Porque a pessoa também é pessoa, pronto. Mas depois (e antes e durante a discussão) a mãe tem o coração pequenino e escuro, porque sabe, vê, sente o caos que vai naquela pessoa que já não é pequena mas também ainda não é grande. Até onde pode ir a compreensão e onde deve começar (continuar?) o estabelecimento de limites? Quando começa a auto-disciplina a ser uma coisa autónoma? E porque raio, complicam eles tanto as coisas? Tenho sempre medo de os perder, tenho sempre presente o terror de um dia o laço de quebrar. Porque isso acontece! Uniões familiares fortes e felizes, que um dia acordam e o filho é um continente e a mãe outro continente e já só há contactos sem abraços. Tenho pensado ultimamente muito nesta questão e tenho tentado ler sobre o assunto e os melhores conselhos, das pessoas especialistas na matéria, são sempre na lógica de saber manter o equilíbrio entre estar e deixar ir. Mas isso é tão difícil de fazer! Ter que ter essa sensibilidade para a leitura correcta dos momentos, tendo todo o resto da vida a correr! Tendo três filhos únicos em disputa por tempo e atenção, mais concentrados em lutas territoriais constantes, do que em aproveitar o momento... Às vezes tenho clara noção que não vi o momento, não reconheci que era ali, naquela conversa, naquele instante. E depois o que fica é a percepção errada. Fica a mágoa. Penalizo-me sempre por isso. Caramba! Eu pensava que dormir mal, mudar fraldas e ouvir alguém a berrar horas infinitas era a coisa mais difícil do mundo. Mas não. Bem-vinda, cara Ana, à adolescência! Só não percebo porque fazem os serviços de saúde tantos cursos de preparação para o parto, uma coisa que dura no máximo 24 horas, e zero cursos de pedagogia, psicologia e gestão de relacionamentos.



4 de junho de 2016

baile de gala

Durante todo o dia pareceu ser um dia muito importante. E era. Baile de finalistas da princesa cá de casa que teve direito a tudo e mais alguma coisa, desde cenas de gaja a mimos de todas as pessoas que a quiseram ver antes de ir para o baile. Dias especiais.


2 de junho de 2016

quartas que são domingos (cheios de sol)

(Leiam este post a ouvir isto.)

Ontem tive um dia sem fim. Acho que ontem tive uma semana inteira num dia. De manhã estive a resolver assuntos profissionais e depois fui almoçar com os meus 3 filhos oficiais mais o meu filho não oficial, o Gui irmão mais velho da Mia e Tiago e padrinho da Madalena. Uma criança de 20 anos. Decidimos ir a um restaurante na zona das escolas porque eles tinham horas de almoço não compatíveis e quando é assim, assentamos arraiais num restaurante das redondezas e eles vão rodando, conforme saem ou entram na escola. O último a chegar foi o Tiago, já o circo estava montado naquela mesa. Todos falam ao mesmo tempo e todos acham que eu consigo ouvi-los individualmente e dar respostas personalizadas (e capazes) a cada um. Os assuntos pegam uns nos outros, perdem-se e temos que voltar ao assunto que ficou pendente há 4 assuntos atrás e acho que só depois, muitas horas depois, é que sabemos se conseguimos reter tudo o que cada um disse. Quando acabou, fui despejar cada um ao sítio para onde ia a seguir e segui eu para Lisboa. Em cima da hora para uma visita de estágio que me fez ir um bocadinho a voar. Decidi ligar à minha mãe no caminho a dizer que ia passar à porta dela, mas sem parar porque estava atrasada. Mas quando passei na saída, virei. Como diz o totó (GPS) saí na saída. Não me pareceu razoável passar à porta da minha mãe e não parar para lhe dar um beijo e fazer o report da situação dos últimos tempos em nanosegundos. Além do mais, as boas companhias fazem-se esperar, certo?
Após a visita de estágio, num 14º andar de uma das torres das Amoreiras, com uma vista absolutamente inacreditável, fui andando para o próximo compromisso. Às vezes, quando vou à cidade grande, e não consigo estar com todas as pessoas com que quero estar, uso a estratégia de me posicionar num sítio qualquer e fazer saber onde estou e a malta vai aparecendo. Ontem foi assim. Combinei com uma amiga nos restauradores e sentámo-nos numa esplanada, eu ela e o primo. Chegamos a ser mais do dobro! A grande maioria meus antigos alunos. Mais uma vez conversas atropeladas, mais uma vez pouco tempo para muito que há a viver. Além dos que estavam sentados à mesa, ainda estive com duas amigas que encontrei casualmente ali pela rua. Bem, não foi bem casualmente. A malta estava a juntar-se e fazia-se hora para o Benjamin Clementine. Tempo de dizer até breve e seguir para o Coliseu com duas das pessoas que me são mais importantes na vida, com um bilhete na mão oferecido por outros 3 grandes amigos com prenda do doutoramento. O concerto. Mãe do céu. Realeza. Há pessoas que não são bem e apenas pessoas. São velhas, carregam séculos de saber e sentir na alma. Ensinam-nos. Fazem-nos pensar. Fazem-nos sentir. Param o tempo e obrigam-nos a enfrentar o que por aqui anda mais ou menos latente. Assim foi Benjamin. Único.
Na saída, um cigarro e uma conversa rápida tiveram que servir de despedida. Esperava-me a estrada durante duas horas. Ainda recebi uma mensagem da malta da esplanada, que se tinha mudado para um bar ao lado do Coliseu na expectativa que eu lá fosse depois do concerto, mas a pessoa já vai para os 40 e fica toda rota com este andamentos. No caminho fiz as contas ao dia. Fiz as contas das conversas. Dos planos que nasceram ontem e que são enormes. Do que ri com esta gente toda. Dos nadas em que eu reparo nos outros e que vou registando quase como se isso fosse uma profissão. E contas feitas, passei por quase todas as pessoas que amo num dia só. Os filhos, a mãe, os alunos, os amigos. E a música. As palavras que estão dentro da música. Uma semana vivida num dia só. Recomponho-me todos os dias. Obrigada a quem manda neste assunto chamado vida por me dar esta gente e estes dias.















31 de maio de 2016

em modo suspenso

Foi tempo de pôr em acção o meu plano de desaparecer para dar balanço até ao final do ano lectivo.
Às vezes, estas vontades vadiadoras batem-me à porta e é preciso respeitá-las. Esta bateu-me à porta quando me apercebi que podia beneficiar de uma série de feriados consecutivos e fazer uma espécie de mini-férias traçadas com alguns (poucos) dias de trabalho.
Há várias coisas que começam a ser hábito nas voltas que dou, mas nem todas muito positivas. A mais importante de todas é o meu total falhanço como organizadora da coisa. Em tempos idos eu era a nata da nata do detalhe e planificação de viagens, alojamentos e cenas diversas. Isso acabou. Agora, com os níveis de concentração e capacidade de levar a cabo várias tarefas paralelas a atingirem mínimos históricos, ridículo é um eufemismo para caracterizar o que acontece. Ainda assim, os meus mínimos chegam-me para marcar onde ficar e conseguir pensar o início da rota, ficando tudo o resto naquela maravilhosa categoria chamada "logo se vê".
No primeiro fim-de-semana, aproveitando o feriado municipal, a ideia era ir a Setenil de las Bodegas, na Andaluzia, perseguir uma imagem vista no Trover. Pareceu-me uma boa oportunidade para mostrar aos miúdos Gibraltar e logo se via mais o quê e onde e como e essas coisas. Na véspera de irmos, o Tiago foi para as festas da cidade com os amigos e eu fui ao maravilhoso Pátio da Casa com as miúdas e amigas. Resultado óbvio: chegámos todos a casa tarde que se farta e no dia a seguir levantar, fazer malas e ir originou uma espécie de efeito dominó na minha casa e em tudo o que eu tinha (mal) planeado sobre a ida. Parecia que estávamos a assaltar a nossa própria casa, atirando coisas para sacos e fugindo dali para fora. Quando chegámos a Sevilha caiu-me a ficha de que a) não tinha tomado nota da morada do apartamento; b) não tinha avisado o dono da hora de chegada. Nada que um restaurante com wi-fi não tenha resolvido e lá seguimos. No dia seguinte, fomos a Gibraltar e vou ter que o considerar o ponto alto desta viagem para os miúdos. O encanto com ver-se África mesmo ali, haver um sítio no meio de Espanha onde se fala em inglês, se cobra em libras e tem uma praia pequenina e quase deserta... Foi a loucura! A loucura foi também termos a sorte de ver a fronteira fechar para deixar aterrar dois aviões ali mesmo à nossa frente e, tenho mesmo que meter na lista de "a loucura", encher o depósito com gasóleo a 0,72€/litro. O dia acabou com o pôr-do-sol em Punta Paloma, que de repente são apenas dunas gigantes que tapam a estrada.
O dia seguinte foi o meu ponto alto e exigiu 8 horas enfiados no carro pelo meio da serra. Parámos em Ronda para a voltinha e foto da praxe e seguimos para o destino da mãezinha: Setenil de las Bodegas. A aldeola que nasceu do meio da rocha. Quando demos com aquilo estava morta da capacidade cerebral, mas valeu tudo o que esticámos até lá! É surreal e está aqui bem perto de nós, da malta que mora na fronteira de Portugal. Quando chegámos a casa estávamos dados e a rejeitar a ideia de que no dia a seguir era tudo normal. Trabalho, escola, testes e reuniões...foi um choque passar de uma coisa para outra. Mas durou pouco. Estava já a chegar o próximo carregamento no botão do off! Tudo planeado pela pessoa com quem fui, local e hora de chegar, pela fresquinha. Nada me ia deter. Nada, excepto o jantar e noitada valente que fiz com amigos na véspera. Que me deteve até à tarde do dia seguinte em péssimas condições e me impossibilitou de fazer, como manda a lei, aquela coisa chamada mala, com as coisas que as outras pessoas levam para a praia. Felizmente tive bastante oportunidade para fazer absolutamente nada nos dias seguintes e recuperar de todos os cansaços que me andavam a estragar a actividade cerebral. Para quem só pode tirar férias de jeito no pico da época alta, conseguir estes momentos de curta paragem exige muita ginástica na agenda e não possibilita grandes preparações, mas são a garantia da manutenção do bom humor social, que de si já é curto.

Às vezes é mesmo preciso que exista a paisagem. E que seja uma linha recta até lá ao fundo, sem nada que a perturbe. Sem nada. Foi assim.














23 de maio de 2016

teimosias da mãezinha

Hoje fiz (fizemos) muitos quilómetros e muitas horas dentro do carro pela Andaluzia profunda adentro para chegar aqui, a Setenil de las Bodegas. Encontrei-a há uns tempos no Trover e desde então que teimei em ter uma foto tirada por mim da imagem que vi. Foi hoje.


17 de maio de 2016

segurar a vida

Pode a vida parar? 
Escolher o momento de onde não queremos sair. Pousar. Ficar ali e ser dali para sempre. Ser tempo.
Pode a vida ser só aquela vida, feita do coração desse momento em que quisemos ficar. Não sair do mais puro que somos. Fechar os olhos para voltar a viver onde não pudemos parar. Sentir outra vez o que foi demasiado rápido mas nos fez eternos. Imortais. Querer só que o coração volte a encher do que já transbordou. O meu coração alimenta-se do invisível, do pormenor, do nada ou quase nada pequeno da vida do dia-a-dia. Daquele olhar de soslaio só para reparar no teu perfil, da mão que assenta no meu colo num momento de ócio, dos cabelos espalhados no meu ombro. Da maneira como ris. Da forma dos teus dedos. Quando te cansas e pedes o conforto que sabes ser teu. Às vezes, nesses pequenos momentos invisíveis que são eu, somos nós, quero fotografar-nos com os olhos com que nos vejo para nos guardar assim e agora e a vida parar aqui em nós a fazer nada e a sermos tudo. 
A vida parou. 
O Luís entrou na nossa casa, cheio da paz que anda sempre com ele e parou-nos no que somos. Olhou-nos cheio da bondade que é e viu o tudo que somos. O invisível. O que eu pensava que só nós víamos quando éramos sem mais nada nem ninguém. E agora somos um momento guardado na eternidade onde podemos parar de cada vez que o olharmos. 
Aqui estamos nós como somos, como sentimos e como vivemos.
Obrigada Luís, por nos teres visto. Por seres tão especial. 







10 de maio de 2016

cães, pijamas e lições de inglês

Chegou hoje, após quase um mês de espera, a coleção completa da Patrulha Pata. Todos pelo preço de metade de um, patrocínio do meu estimado eBay.
Actualmente na televisão desta casa só se vêm cães salvadores de diversos e miúdos de pijama salvadores da noite.
Esta tarde, a caminho da ginástica, a Madalena e o Francisco meu sobrinho, tentaram ensinar me a dizer PJ Mask, na versão deles. Algo parecido com pi-ja-macs. Ao fim de já gritarem em coro (e desespero pela minha incompetência) PI-JA-MACSSSSSSS, a Madalena solta um resignado "esquece mãe, tu não sabes falar inglês".
OK, then....


8 de maio de 2016

diabo com caracóis amarelos

Entre as arrumações e o arquivo do espólio recebido no dia da mãe, estava o vencedor na categoria "Deixemo-nos de mariquices e vamos directos ao assunto"  deste ano:




7 de maio de 2016

verão

A pessoa está a fazer dieta. E não está fácil. A pessoa esforça-se muito por se livrar do pecado da gula. Mas a tentação tem sido diabólica. Ontem comprei caramelos de fruta para comer um ou dois quando me desse a ressaca do açúcar. Hoje já quase não há. E agora acabei de vir da cozinha onde despachei, a meias com o Tiago, uma caixa de biscoitos molhados em leite morno. Até estou mal disposta. Não há condições. Juro que só fui à cozinha tomar a minha droga noturna, mas estava lá o Tiago a fazer a ceia e se há coisa que me dá mesmo felicidade são as conversas de balcão de cozinha com ele. Quando estamos os quatro em casa, estes momentos só nossos são raros, quase únicos. As irmãs não lhe dão hipóteses e ele passa o tempo perdido nos vídeos do YouTube, no GTA e nele próprio. Eu sei que morar só com mulheres não é fácil, mas também sei que isto ainda lhe vai trazer muitas vantagens no futuro! Nesta gula partilhada, estamos só nós encostados a comer, a dizer palermices e rir. Ele imita teatralmente, de forma exagerada, quase todas as pessoas que conhece e vai comentando a performance e, quando se ri do que acabou de fazer, faz duas covinhas nos cantos da boca e fica mesmo bonito. O Tiago é o Verão. Ultimamente tem andado como o tempo. Baralhado e repentino. Esquecido da estação que é. Mas quando se lembra de quem é, é sempre o Verão.




6 de maio de 2016

ser

Acompanhar a vida de alguém tem uma parte maravilhosa, a descoberta. Assistir à descoberta, aos momentos de revelação do ser. Há na Mia, quando dança, uma tranquilidade de só ser que é das coisas mais bonitas a que posso assistir.



4 de maio de 2016

magic people


So many good things have happened to me because of the good people that are in my life, that some of them almost seem unbelievable.

Feeling so exausted and in extreme need of silence and nothingness, I kept dreaming about spending some days alone, in a resort. Unfortunately, my budget doesn't allow me to consider that!

Last week a friend of mine invited me to stay in a resort for 5 days and just chill out and watch the grass grow, laying on the sun, with a drink in my hand.

And today, while exchanging emails with the people I am spending the summer with, I understood that they are really worried about me for not staying longer. I'ts just amazing how life can bring us everything we need at the right time, if we are able to trust time.

I feel so blessed. I have such good feelings about all these things, people. It's magical for me. So much love.




3 de maio de 2016

do acaso

É impossível saber o momento em que damos ordem e significado ao que antes não era nada além da possibilidade de ser qualquer coisa. No papel, o vazio origina a forma. Do nada construímos tudo e às vezes não sabemos dizer porque foi, como foi, em que momento a dobra que fizemos na vida, nos levou a criar esta forma que existe agora.




1 de maio de 2016

becas

Há poucas certezas na vida e à medida que a vida avança vão havendo cada vez menos. Uma das certezas da vida é a finitude. Aprende-se que o tempo da imortalidade e da inconsequência acaba. Por isso, sei que tenho que vos guardar dentro de mim, na minha memória fotográfica interna, porque o tempo está a passar e daqui a pouco, já não vos vou levar à escola, nem parar no portão a arranjar os cabelos ainda meio despenteados, nem vão existir os sorrisos com dentes de poucos anos enquanto a mão acena um até logo e um ansioso "a que horas me vens buscar?".








30 de abril de 2016

encontros e partilhas

Em Outubro próximo comemoro 15 anos como professora no Ensino Superior. Ao longo de tanto tempo necessariamente muito mudou. Não só a própria estrutura do ensino superior, como a organização e metodologias das aulas.
A minha primeira aula, que recordo cada milésimo, foi dada em pânico. Era a primeira e eu era quase da idade deles. Nessa altura eu já não era aluna, mas também ainda não era professora. Esse limbo durou muito tempo. Encontrar o passo do caminho foi complicado para mim.
Embora se possa dizer, se olharmos apenas para o imediato e visível, que tudo mudou, na verdade nada mudou.
Há um dia que permanece.
A Queima das Fitas. O Adeus.
Sei, no dia que conheço cada um dos meus alunos, que em três anos (em média) me vou despedir dele. O olá que é dito tem a data do adeus marcada.
E isso não muda. Talvez apenas já tenha ultrapassado a ideia de que é definitivo, de que a ligação que se criou acaba ali. O tempo ensinou-me que estava errada, porque muitas pessoas ficam na minha vida e deixam-me ficar na nelas.
Alunos que se transformam em amigos.
E por isso o dia de hoje, da despedida, é mais tranquilo, mais bonito e transforma-se em apenas mais uma (muito importante) partilha.
Os encontros vão continuar. Por ai, na vida.
Quem entra na nossa vida, nunca vem em vão.

Até logo, malta.
Que a vida vos permita a oportunidade e que vocês saibam reconhecê-la e mostrar a capacidade.

See you around. 💚

Fizemos este vídeo há uns anos e, por isso estes alunos já são diplomados. Permanecem. Eles e o que sentimos uns pelos outros.









26 de abril de 2016

ela faz cinema*

Hoje fui à tua procura. Fingi que tinha coisas a fazer por ali, na rua por onde andas. Fingi a mim mesma, pois não preciso fingir a ninguém. Fingi que precisava mesmo muito de ali ir. E fui. Devagarinho, para dar mais tempo à oportunidade de nos encontrarmos. Mas a fatalidade do destino foi madrasta comigo. Fiquei a pensar que não era boa hora para ter ido. Fiquei a pensar que amanhã terei que fingir novamente que preciso de ali ir, mas amanhã já sei que vou precisar de fingir que preciso de ali ir mais tarde. À hora do lanche. A essa hora terás concerteza que sair e terás concerteza que passar na mesma rua onde eu estou a fingir que tenho coisas a tratar. E vou-te ver. Sei que sim. Sei que te vou ver e sei também, com a mesma certeza, que tu me vais ver. Vais-me olhar. E, nessa altura, eu vou fingir que não te vi, porque nessa altura eu vou ter a certeza que tu sabes que eu não tenho nada a tratar ali e que estou só a fingir a mim mesma que tenho de ali ir tratar de uma hipotética coisa muito importante. Vai ser assim. E vou, novamente, fingir que não és importante para mim, que nem te reparei, ou que sou arrogante porque te reparei e não te falei. E sei também que nunca saberás que eu só fingi que não te vi porque estava ali a fingir que tinha uma coisa importante a fazer naquela rua, naquela hora e que tu sabias que eu não tinha mais nada que fazer ali senão ver-te, sofrer-te, querer-te e perder-te rua abaixo. 



*Chico Buarque