25 de agosto de 2016

you are not alone

Sapatos. Caixas cheias de sapatos. As indicações eram simples. Era preciso tirar uma caixa qualquer da parede de caixas, abrir e depois organizar os sapatos por número. Se não estiverem em bom estado, vão para a caixa dos rejeitados. Caso contrário, limpar de possíveis acrescentos que as pessoas tivessem decidido dar: peúgas, papel a garantir que eles não perdiam a forma. O que parece uma boa ideia em casa de alguém, num campo de refugiados é apenas lixo. Tem que ser limpo no armazém antes da distribuição. Depois são novamente encaixotados por categoria: homem, mulher ou criança e, dentro de cada categoria, verão, inverno ou ténis. Fechar a caixa, por número do pé, e forrar nova parede, já dentro do armazém da organização. Precisamos de fazer stock. A distribuição só acontece quando garantidamente existirem sapatos para todos. Nada vai para o campo enquanto não houver um item para cada pessoa que esteja a morar lá.
Perguntei: Como decido se os rejeito?
Responderam-me: Se os desses aos teus filhos é porque estão bons.
Os meus filhos.
Ali estive, com mais quatro voluntários, por muitas horas, muito calor, muitas caixas.
A verdade é que não se pensa em nada. Faz-se.
Nalgumas caixas estão sapatos iguais aos dos meus filhos, noutras caixas estão sapatos novos ainda com etiqueta. Há também sapatos de festa, temos uma caixa especial para esses, porque esses sapatos não entram no campo. No party people.
Cerca das três da tarde, um grego que é um dos fiéis do armazém grita a plenos pulmões STOP-OUTSIDE! Nessa altura, estavam na sala apenas voluntários acabados de chegar e por isso seguimos os outros que foram aparecendo por trás de outras paredes de caixotes, imitando a sua normalidade e repetindo os gestos, observando antes de actuarmos.
No hall de entrada, os gregos que tomam conta deste antigo pavilhão construído para os Jogos Olímpicos, montaram umas mesas e meteram algumas cadeiras à volta. Não dá para todos e, por isso, eu e a Andreia sentamo-nos no chão, com o kit que nos deram. Era o almoço. Em caixas de plástico. Exactamente o mesmo que tinha sido distribuído no campo aos refugiados. É feito e distribuído pela marinha todos os dias. Abrimos as caixas e vamos fotografando todos os passos. Primeiro o kit como nos dão. Depois o kit espalhado no chão, mas ainda fechado, depois a caixa maior aberta. Abrimos e comemos. Em silêncio. Ao fim de uns minutos não aguento mais e pergunto à Andreia: Gostas?
Não aguentava mais não saber se ela gostava. Não aguentava mais lidar sozinha com aquilo. Na minha cabeça corria a cena familiar habitual de uma ida ao fast-food, onde nos dão sempre só dois tabuleiros com a comida toda amontoada e, quando me sento na mesa com os meus filhos, distribuo-a por cada um e quando acabo digo na brincadeira "comam e se não gostarem, mintam".
Se não gostarem, mintam.
Agora como em silêncio, imaginando-me a distribuir aquele kit aos meus filhos e a saber que não precisaria pedir que mentissem. Precisaria apenas que comessem. Eu comi. Por respeito aos que também comeram aquilo hoje.

Voltámos aos sapatos. Pego uma caixa de sapatos de homem. Noto papéis lá dentro e tiro-os para deitar fora. Ao fundo, um post it dobrado trazia uma mensagem para o próximo dono dos sapatos.
Dizia, tu podes estar a comer num caixa de plástico, tu podes estar a morar num tenda, tu podes não saber o que te vai acontecer nem amanhã nem daqui a um mês nem daqui a um ano, tu podes estar desesperado. Mas tu não estás sozinho. Eu tenho amor para te dar.

Voltei a dobrar o papel e meti-o dentro do sapato. É importante que a mensagem chegue ao destino. É importante que se saiba isso. Mais. Muito mais do que se faz, é o que se dá de nós.



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