30 de agosto de 2016

kalispéra*

Podia sentar-me a escrever histórias sobre pessoas. Passo o dia a ouvi-las. E a perguntá-las. E a responder a minha história. E, sim. Sim, há histórias devastadoras. Sim, há histórias que ficam com frases a meio, frases que vão ficando cada vez mais baixinhas até que se deixa de ouvir a voz. Há frases curtas. De quem quer contar sem palavras. Conta com o corpo, com o olhar para o chão, com o gesto que faz com a mão. Mas também há histórias maravilhosas. Ou histórias tristes, contadas de forma maravilhosa. Pessoas maiores que o que lhes aconteceu. E continua a acontecer. Se vim aqui aprender alguma coisa, foi com certeza novos significados para palavras antigas. Dignidade. Respeito. Tolerância. Orgulho. Amor. Pessoa.
Podia sentar-me a contar histórias que fazem chorar, ou reflectir sobre prioridades, sobre orgulhos e vaidades, sobre desperdícios de tempo apenas e só porque as pessoas têm medo e vivem dentro dos seus medos. Medo de falhar, medo do ridículo, medo de se exporem, medo da rejeição. Medo. Medo. Medo. De viver.

Mas hoje não. Hoje quero registar este dia como o dia das pessoas livres de medos.
Hora de saída do campo. Começamos a anunciar que temos que ir. E os miúdos mais velhos, os "Tiaguinhos" como eu lhes chamo, começam a chegar-se e a meter conversa. São sempre os mesmos. Os que ajudam todo o dia os voluntários durante as actividades a tomar conta dos mais novos.
Escoltam-nos ao carro, numa atitude de total cavalheirismo e vão conversando pelo caminho. Fazem isto sem perguntar se podem ir, se queremos que eles vão. Simplesmente vão.
Hoje ensinaram-me a dizer boa noite em grego e quiseram aprender a dizer em português. Um deles sonha ir morar para Espanha. É lá que joga o maior do mundo, o Cristiano Ronaldo. Ele quer vê-lo a jogar e no fim vai conhecê-lo. Explica-me isto tudo com a maior da sacanice no olhar. Os olhos dele são de uma cor indefinida. Algures entre o azul, verde e avelã. Dá-me a mão, com os dedos entrelaçados, enquanto me explica que depois me vai visitar a Portugal. Do outro lado, vai o Jamal. Esse já o conheço há mais tempo. Ele sabe isso e já se comporta com essa segurança. Falamos da escola e de que tem que continuar a estudar, mas ele está mais interessado em saber até quando fico no campo e qual dia é que é mesmo o último. Quando chegamos ao destino, despedem-se com um high five. O Jamal ensaia um meio abraço e sorri. Sem medo. Sem medo de se dar.

*boa noite em grego.

Sem comentários:

Enviar um comentário