26 de março de 2016

das pessoas que permanecem

Por mais tempo ou mais distância existem pessoas que permanecem. Transformam-se num lugar onde podemos ir e simplesmente estar. Transformam-se num espaço que é nosso. Cheio de nós e de cada uma. Há um protocolo. Uma sugere o encontro, outra decide onde é e outra chega (sempre) atrasada! Sentamo-nos e ao início falamos à vez, sem atropelos. É preciso antes de qualquer outra coisa, fazer o ponto de situação. A ordem de falar é quase sempre a mesma e respeita a personalidade de cada uma. Só depois é que começamos a dar atenção ao que nos rodeia, aos outros, à música ao vivo, ao que queremos comer e às horas. Normalmente quando damos atenção às horas, passaram muitas. Mais do que esperávamos. Como os anos que temos juntas. Passaram muitos. Sem que déssemos por eles.




8 de março de 2016

olharapa

Faz agora mesmo a esta hora 15 anos que me rebentaram as águas e eu nem sabia o que me estava a acontecer. Ao longo do dia hão de fazer 15 anos que penei, como não achei que fosse possível, até às oito da noite à tua espera. Tirei um curso intensivo sobre o que é fazer nascer alguém ao natural, com presença do tão falado parto de rins. Até que apareceste. Eras amarela, careca e tinhas dois faróis na cara. E eu não fazia ideia do que era aquilo que tinha acabado de me acontecer. Olhavas na minha direcção, sorumbática. Eu queria achar-te graça, dizer coisas bonitas, sentir coisas especiais. Mas só sentia medo. No outro dia de manhã, a enfermeira veio dar-te banho e deixou-te em cima da cama, indo-se embora como se me pudesse deixar ali abandonada contigo. Assim sem mais nem menos. Assim sem me explicar o que te fazer. Continuavas a olhar-me fixamente. Macambúzia. Voltei a sentir medo.
Quando te levei para casa descobri que não vinhas para cumprir o papel que se espera dos bebés. Vinhas para dormir, comer e não fazer o que se esperava que um bebé fizesse. Brincadeiras de bebé recebiam olhares secos e desinteressados. Às vezes suspiravas de fastio. Fazias esgares, mas acho que eram mais espasmos que tentativas de cordialidade. Nunca gatinhaste, mas um dia levantaste-te e começaste a andar sem cair, como se andasses a praticar às escondidas enquanto a malta dormia. Nunca tentaste palavrear, mas um dia começaste a falar como se lesses na missa todas as semanas. Uma vez, quando tinhas três anos, perguntei-te se conseguias abrir-me uma porta porque ia carregada, respondeste "obviamente que não". Há adultos que não sabem que a palavra obviamente existe. Não compreendias as terminações fofinhas das palavras e por isso para ti existiam galas em vez de galinhas, golfos em vez de golfinhos, cornos em vez de cornetos. Mariquices para quê, certo?
Enquanto crescias as pessoas que lidavam contigo, pediam-me para não ser tão exigente com a menina. E eu pensava que o que eu queria era que a menina não fosse tão exigente comigo. Há muitas coisas que não fazes bem. Basicamente, todas as que não te interessam. O resto, não há nada que não faças de forma exemplar e única. E assustadora. Ouvir-te fazer planos sobre como te vais organizar para alcançar que queres é admirável. O empenho que colocas em tudo o que fazes, a determinação com que segues caminho, a maneira como te questionas e ao que te rodeia são admiráveis. Tens penado um bocadinho por causa disso. O pacote de personalidade que te calhou tem tanto de obstinado quanto de sensível. Os olhos, que de grandes que são não fecham completamente quando estás a dormir, só têm equivalência com o teu coração. És uma peixa de verdade. Uma mulher que nasceu no dia da mulher e que vem para ter uma voz. Uma mulher do mundo. És a minha filha. Ensinaste-me a ser mulher. Ensinas-me todos os dias que o difícil vale mais a pena. Continuo com medo. Que o mundo te falhe. Que os outros te magoem. Que a vida não te entenda. Que te feches. Principalmente, tenho medo que não te descubras. Que não percebas a força que tens. Que não vejas que és especial e que talvez por isso muitas vezes mal compreendida. Tenho medo. Que não saibas o quanto te amam. Que não percebas o quanto a serenidade e silêncio com que observas as coisas do mundo e da vida são encantadores. Que não vejas como a tua marca fica no coração de quem te recebe. Que não percebas a força que a segurança com que te afirmas e te defendes te dá. Que não valorizes a tua capacidade de lutar pelo que acreditas e a convicção que tens de que precisas sempre de ser além do que és. Possa a vida, minha filha, trazer-te todas as respostas que tanto procuras e todo o amor que mereces. Possam os dias dar-te a alegria, o entusiasmo e a presença que tu dás a tudo o que acreditas. Possam os outros ver além do que se vê, para que descubram o infinito da tua doçura. Possas tu, minha filha, dar tempo a ti própria para sentir a brisa dos dias.
Chamei-te Margarida. Mas quiseste ser Mia. Como em tudo. Sabes o que queres e quando queres. És a minha pequena heroína que me salvou da melancolia e me disse que não fazia mal entregar o coração nas mãos de outra pessoa. Parabéns, Pipoca Mi.