28 de novembro de 2022

high hopes

hoje partilhei um daqueles resumos de fim de ano que o spotify faz, das músicas que mais ouço.

caiu o carmo e a trindade da internet. estavam na lista, aparentemente, músicas que fazem de mim uma pessoa não cool, provavelmente menos aceitável na esfera da malta que sabe cenas.

eu nao sei de música. nem de cinema. sei qualquer coisa de plantas e de livros. de livros sei mais que qualquer coisa. e sei da minha vida, do que vivo e sinto e sei-o tão seguramente que o sei sem medos de julgamentos e convenções. não vivo enterrada nelas. não sou escrava do que é trendy.

aquele aplicativo deixa escolher entre "desde sempre" e "últimas 4 semanas". experimentei e as coisas mudavam bastante. tirando os cabeças de cartaz habituais, a música que oiço muda bastante. Por exemplo, saiu de cena o tim bernardes, que ouvi bastante num período em que estava muito deprimida e entrou malta a que regresso em momentos mais tranquilos e felizes. ou quando procuro relembrar-me do que me define, de quem sou, e de como sou.

e eu sou livre, malta. se há coisa que eu sou, é esta: livre.

permito-me a ter na minha vida toda uma mescla caótica de coisas, gostos, vontades, razões, que entram e saem conforme sou e estou. talvez por isso eu faça tanta coisa, vá a tanto lado, conheça tanta gente, reajo com curiosidade à vida e entrego-me ao que me traz. não tenho definição. sou quem sinto a cada momento.

permito-me ter o frei hermano da câmara, mas também o marco paulo ou o paulo de carvalho e uma série de discos que a minha mãe metia no gira-discos todos os sábados de manhã, enquanto fazia e nos obrigava a fazer limpeza. odiava mesmo fazer limpeza. odiava mesmo ser forçada a acordar, levantar-me e limpar a casa como quem desinfecta uma cena de crime. e hoje, dezenas de anos depois, são os sábados de manhã que me salvam tantas vezes. consigo ver-nos em casa, cada um para seu lado a executar as ordens que tinha recebido, enquanto a música se ouvia pela casa toda. o que antes eu não suportava, é hoje o grande alicerce da minha vida, o regresso a casa.

eu ouvia outros discos que por lá existiam e foi nessa altura que entrou em mim o Chico Buarque, Caetano, Bethânia, e toda a música popular brasileira da velha guarda. Ouvia a música enquanto lia as letras que vinham num panfleto todo dobradinho dentro do disco. e educava-me. aprendia a sentir e a perceber o que sentia. crescia sem saber. preparava-me para ter tudo o que iria precisar para me aguentar ao longo da vida.

havia um disco, que agora tenho cá em casa, da Bethânia e do Caetano, que tinha no verso uma frase:

não pode alcançar os astros quem leva a vida de rastos, quem é poeira do chão.

anos mais tarde li a mesma coisa numa ode do ricardo reis e só a consegui perceber porque já a tinha recebido anos antes, na contra capa de um disco. percebi que eu não era pessoa de viver de rastos, que eu seria sempre alguém que sacode a poeira quando se levanta do chão.

e é isso a música. um lugar onde se pode voltar. às vezes, voltar a nós.

e pouco me importa qual é a etiqueta sócio-cultural que tem. levei muitos anos a aceitar-me para agora me esconder, para não publicar a minha listinha porque está lá este ou aquele, para não publicar aquela foto, porque estou gorda, ou velha ou feia ou o que quer que seja que eu esteja. ou seja.

eduquei os meus filhos com música. todos conhecem e gostam de Leonard Cohen. e todos perceberam cedo que a música é um barco salva vidas. como é a poesia. como é um livro.

hoje tenho uma música, ou várias, que me leva a eles. coisas tão pequeninas e simples que aconteceram.

fui com a mia a budapeste e, na última noite, fomos a pé para buda e sentámo nos a olhar o danúbio de frente para o parlamento. a cidade é extremamente escura, eles só iluminam os monumentos. ali estávamos, sentadas no escuro e no silêncio e eu peguei no telemóvel, abri o spotify, meti uma playlist e tocou high hopes, dos kodaline. e foi perfeito.

quando a mia é feita de ausência, oiço a música e, para mim, é sobre ela e sobre nós. 

há alguma coisa mais foleira que isto? nada

há alguma coisa mais bonita que ter a minha filha para sempre dentro de mim? nada

a do tiago é uma música que ele gostava muito em certa altura da vida dele. uma vez, estávamos na varanda. eu na cadeira a ler e ele deitado na cama de rede e meteu a música a tocar. lembro-me de olhar para ele, ali deitado, tão livre, tão feliz, tão em paz. e essa música colou-se no meu coração e tapa todos os buracos que a vida nos cria.

a da nena é uma música que surgiu numa trend do tiktok. é tão alegre. é tão divertida.tal e qual ela. cantou a à minha frente, numa manhã que me acordou sem pedir licença, cheia de demasiada energia matinal. e hoje mandamos essa música uma à outra sem razão. só porque nos lembramos de nós. e gostamos de nos lembrar, da nossa alegria palerma.

a par com estas minhas memórias, houve pessoas a partilharem me as dela e não havia uma única música que não fosse popular a estar dentro deles. somos portugueses, criados por portugueses que ouviam música popular. e isso deve ser mais forte que qualquer convenção, que qualquer pressão social para só se ouvir o que nos mandam ouvir, para só ler o que nos mandam ler. para só fazermos o que achamos que nos faz ser mais aceites ou considerados. para pensar de forma tão limitada. entristeceu-me isso. entristecem me as amarras.

que se fodam os outros. só nós interessamos no nosso infinito particular. só o que está debaixo da pele, mais agarrado aos músculos, memória e coração, que qualquer bocado de gordura, colesterol, células defeituosas e opinião alheia.

liberdade.

sempre e acima de tudo e todos.
























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